No dia 13 de setembro de 2023, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ, douta em matéria penal, aprovou cinco novos enunciados sumulares (compreendidos como resumos de entendimentos já sedimentados nos julgamentos desta Corte e que são utilizados como orientações jurídicas sobre a jurisprudência do tribunal, conforme disposto nos artigos 122 e 123 do Regimento Interno do STJ), entre elas, a Súmula 658 (STJ, 2023), dispondo que:
O crime de apropriação indébita tributária pode ocorrer tanto em operações próprias como em razão de substituição tributária.
Nesse sentido, a análise do crime de apropriação indébita tributária se demonstra imperiosa para a devida compreensão da súmula supramencionada, estando tipificado no artigo 2°, inciso II, da Lei n. 8.137/90 (BRASIL, 1990):
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (…)
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (…)
II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; (…)
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
A técnica aplicada pelo legislador na especificação do comportamento criminoso acaba por criar a figura vinculada, objetivando afastar qualquer dúvida sobre a tipicidade da conduta, a qual se refere à atuação do sujeito que tem a responsabilidade, por substituição, de efetuar o pagamento do valor do tributo, sem se fundir com o contribuinte diretamente relacionado ao fato gerador, nos moldes das normas vigentes do campo tributário (como nos casos de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, e Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI).
O delito em comento detém como intuito a proteção da ordem tributária (erário público), enquanto patrimônio administrado pela Fazenda Pública, salvaguardando a legítima expectativa de ingressos valorativos ao erário público.
Ademais, de modo generalizado, o sujeito ativo do crime é a pessoa física que ostenta a condição de responsável pelo pagamento do tributo, portanto, a pessoa que, figurando como substituto tributário (não detém a condição de contribuinte diretamente vinculado diretamente vinculado ao fato gerador, mas está legalmente obrigado a cumprir prestação ao fisco), deixa de recolher o tributo descontado ou cobrado de terceiro (BITENCOURT; MONTEIRO, 2023, p. 56/57; SEBRAE, 2015).
Outrossim, o Superior Tribunal de Justiça adotou entendimento de que a utilização da palavra cobrado no texto legal deve ser interpretado nas relações que englobam tributos indiretos, por mais que sejam realizados em operações próprias, já que “o contribuinte de direito, ao reter o valor do imposto ou contribuição devidos, repassa o encargo para o adquirente do produto”, conforme se depreende do julgamento do HC 399109/SC (STJ, 2018):
HABEAS CORPUS. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS POR MESES SEGUIDOS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. DECLARAÇÃO PELO RÉU DO IMPOSTO DEVIDO EM GUIAS PRÓPRIAS. IRRELEVÂNCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO. TERMOS “DESCONTADO E COBRADO”. ABRANGÊNCIA. TRIBUTOS DIRETOS EM QUE HÁ RESPONSABILIDADE POR SUBSTITUIÇÃO E TRIBUTOS INDIRETOS. ORDEM DENEGADA. 1. Para a configuração do delito de apropriação indébita tributária – tal qual se dá com a apropriação indébita em geral – o fato de o agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido não tem o condão de elidir ou exercer nenhuma influência na prática do delito, visto que este não pressupõe a clandestinidade. 2. O sujeito ativo do crime de apropriação indébita tributária é aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme claramente descrito pelo art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, que exige, para sua configuração, seja a conduta dolosa (elemento subjetivo do tipo), consistente na consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo devido. A motivação, no entanto, não possui importância no campo da tipicidade, ou seja, é prescindível a existência de elemento subjetivo especial. 3. A descrição típica do crime de apropriação indébita tributária contém a expressão “descontado ou cobrado”, o que, indiscutivelmente, restringe a abrangência do sujeito ativo do delito, porquanto nem todo sujeito passivo de obrigação tributária que deixa de recolher tributo ou contribuição social responde pelo crime do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, mas somente aqueles que “descontam” ou “cobram” o tributo ou contribuição. 4. A interpretação consentânea com a dogmática penal do termo “descontado” é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo “cobrado” deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo), de maneira que não possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direito. 5. É inviável a absolvição sumária pelo crime de apropriação indébita tributária, sob o fundamento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias é atípico, notadamente quando a denúncia descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há excludentes de ilicitude, como ocorreu no caso. Eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar há que ser esclarecida com a instrução criminal. 6. Habeas corpus denegado. (STJ – HC: 399109 SC 2017/0106798-0, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 22/08/2018, S3 – TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 31/08/2018) (Grifamos)
No entanto, a doutrina especializada entende pela desnecessidade da previsão deste delito, sob a perspectiva de que a conduta expressa seria uma espécie de fraude para lograr o não pagamento de tributo, a qual estaria englobada pelo inciso I, na hipótese de fraude praticada pelo responsável tributário em sentido estrito com a finalidade de eximir-se do pagamento de tributo, por exemplo.
Além disso, desaprova-se o entendimento do STJ em detrimento da ampliação dos sujeitos ativos que podem ser identificados no caso concreto, resultando na expansão da punibilidade (BITENCOURT; MONTEIRO, 2023, p. 58) e, consequentemente, na aplicação de analogia in malam partem, transgredindo o disposto no artigo 5°, inciso XXXIX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
Não obstante a crítica doutrinária, a edição e aprovação da Súmula 658 da referida Corte evidencia a prevalência e pacificidade ampliativa do sujeito ativo do disposto no artigo 2°, inciso II, da Lei n. 8.137/90, resultando na imposição de obstáculo para o êxito de teses em demandas destinadas ao STJ que conflua com a doutrina.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, Cezar R.; MONTEIRO, Luciana de O. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553626980. Disponível em: <https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553626980/>. Acesso em: 22 set. 2023.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 22 set. 2023.
_____. Lei n. 8.137/1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8137.htm> Acesso em: 22 set. 2023.
_____. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/Regimento/article/view/500/3931> Acesso em: 21 set. 2023.
_____. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Súmula n. 658. O crime de apropriação indébita tributária pode ocorrer tanto em operações próprias como em razão de substituição tributária. 2023.
_____. Terceira Seção Aprova Cinco Novas Súmulas. Brasília, 15.09.2023. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/15092023-Terceira-Secao-aprova-cinco-novas-sumulas.aspx> Acesso em: 22 set. 2023.
SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS – SEBRAE. Entenda o que é a substituição tributária e quais seus benefícios. Brasília. 23.11.2015.