Recentemente a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), considerou que a doação de um imóvel realizada por pais aos seus filhos, tratando-se de imóvel no qual tanto estes quanto aqueles residem, não configura fraude contra credores, uma vez que, por ser um local onde a família seguiu habitando, é considerado bem de família e, portanto, goza de impenhorabilidade, acrescentando-se ao referido entendimento o fato de que a transmissão não altera a destinação primitiva do imóvel (REsp 1.926.646).
A fraude contra credores ocorre quando o devedor insolvente, visando proteger seus próprios interesses e com o objetivo de impossibilitar que o credor coloque em curso quaisquer mecanismos para satisfazer o débito pendente, se desfaz de todos os bens que poderiam adimplir tal dívida.
Esta modalidade de vício encontra-se disciplinada pelos artigos 158 a 165 do Código Civil, os quais afirmam que os negócios de transmissão gratuita de bens (como doação), de remissão de dívida, ou onerosos, realizados por devedor já insolvente, poderão ser anulados pelos credores, sob a justificativa de que tais negócios celebrados são lesivos ao seu direito de ter o débito quitado.
Frisa-se que a fraude contra credores é configurada pela transmissão realizada antes do ingresso em juízo do credor, sendo uma forma do devedor causar um prejuízo futuro, quando o credor buscar executar os débitos.
Logo, para uma transmissão caracterizar uma fraude contra credores, é necessária a comprovação de prejuízo ao credor (eventus damni) e o conhecimento da insolvência do devedor alienante pelo terceiro adquirente (scientia fraudis).
É necessário esclarecer que o pressuposto chamado eventus damni se configura quando a transmissão do bem acabe agravando o estado de insolvência do devedor ou nos casos em que esta transmissão tenha dado origem a este estado de insolvência.
Para o credor buscar o reconhecimento desta fraude, é necessário o ajuizamento de ação específica, qual seja, Ação Pauliana, prevista no artigo 161 do Código Civil. Nela, o credor deve demonstrar a presença dos pressupostos para sua caracterização, os quais já foram anteriormente mencionados: 01. Intenção do devedor prejudicar os meios do credor ter o débito adimplido (eventus damni) e 02. O acordo malicioso entre o devedor alienante e o adquirente do bem (scientia fraudis).
Assim, se devidamente comprovado o vício, os atos praticados que impossibilitaram o credor de adquirir os bens de titularidade do devedor para garantir os valores pendentes, serão anulados.
Nota-se, portanto, que a fraude em questão é caracterizada, pois o referido negócio realizado teve como objetivo reduzir patrimônio que poderia ser utilizado para quitar o débito em aberto. Além disso, o terceiro que adquiriu o bem, objeto de transmissão, deve ter conhecimento da insolvência do devedor alienante e, portanto, da pretensão deste em prejudicar o credor.
Desta forma, os devedores devem ter o devido cuidado ao resolver transmitir algum bem para terceiros, ainda que sem a efetiva intenção de prejudicar o(s) credor(es), pois há o risco de anulação do negócio celebrado.
No caso da decisão da Terceira Turma do STJ, mencionado no início do artigo, a fraude somente não foi caracterizada porque o imóvel em questão se tratava de bem de família e, portanto, protegido pela impenhorabilidade. Além disso, o imóvel tinha como finalidade a residência da entidade familiar do devedor. Logo, a doação dos pais aos seus filhos menores, e, portanto, também moradores do imóvel, não alterou a destinação primitiva do imóvel.
Conclui-se, portanto, que não houve fraude contra credores no caso em comento, por não ter ocorrido o eventus damni, pois, ainda que tenha ocorrido tal transmissão do imóvel, este continua na posse das mesmas pessoas (pais e filhos) e com sua finalidade (moradia para a família) inalterada.
ESCRITO POR PÂMELA MONTESANTI DEMUCI
REFERÊNCIAS:
– MIGALHAS. Fraude Contra Credores. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/257730/fraude-contra-credores. Acesso em 11 mai.2022;
– STJ – Notícias. Intenção de Lesar o Credor não é Imprescindível para Caracterizar Fraude. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-05-15_09-27_Intencao-de-lesar-credor-nao-e-imprescindivel-para-caracterizar-fraude.aspx. Acesso em: 11 mai. 2022;
– TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 12. ed. São Paulo: Editora Método, v. único, 2022.
– BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Terceira Turma). Recurso Especial 1.926.646. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO PAULIANA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA. BEM DE FAMÍLIA. MANUTENÇÃO DA DESTINAÇÃO. IMPENHORABILIDADE. RECONHECIMENTO. FRAUDE CONTRA CREDORES AFASTADA. CERCEAMENTO DE DEFESA. CONFIGURAÇÃO. Recorrente: Marcelo Dahruj e Outros. Relatora: Ministra Nancy Andrighi,15 de fevereiro de 2022. Resp 1926646/SP. Brasília, Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp. Acesso em: 11 mai. 2022;